PRIMO, Gustavo. O Homúnculo ou O Livro das Secreções. São Carlos, 2015. (texto completo)

MOTE

(…)

O último laboratório, repetia para mim mesmo. A última oficina. Um pouco perdido, eu agarrava essas palavras como se minha consciência se recusasse a aceitá-las. Contudo ao mesmo tempo minha cabeça se pusera em movimento, tomada por um turbilhão louco, com as paradas e os retornos bruscos próprios do estado febril. No rádio a voz continuava a discorrer, porém eu já não a ouvia mais. A última oficina do mundo, falei em voz alta dessa vez, como para arrancar meu espírito de seu torpor. Já corria perigo. Era preciso aproveitar antes que fosse tarde demais. Antes que caísse em ruínas, fosse recorberta pela areia ou pelo véu do esquecimento.

Eu me surpreendi andando pelo quarto em todas as direções. Gostaria de pensar mais demoradamente sobre esse caso, porém era impossível. Meus Deus, precisamos nos apressar!, dizia para mim mesmo. Precisamos ir para lá o quanto antes. Descobrir esse laboratório antigo. Milenar. Ver de perto como no microscópio, ouvir como no estetoscópio a maneira pela qual era produzida a cera, a medula homérica, depois, dali, nos bastaria um passo para decifrar o próprio enigma de Homero.

Silêncio!, ordenei-me logo. Nenhuma palavra sobre isso a ninguém. Tirando Max Roth…

Minha cabeça continuava fervilhando. Já não era um cérebro, e sim alguma coisa parecida com as cataratas do Niágara. Como isso ainda não havia ocorrido a ninguém? Ia analisar e estudar in loco o mecanismo milenar que produzia esse material mágico. E o milagre se realizava ainda em nossa época, enquanto eles, em Manhattan, Paris, Dublin, a milhares de quilômetros desse local, continuavam se dedicando a discussões estéreis.

exercício: criação de uma narrativa a partir do mote dado, construindo a ideia de circularidade, a experiência de repetição como retomada ou espiralação.

Obs: a origem do mote era inicialmente desconhecida.

KADARÉ, Ismail. Dossiê H. Trad. Bernardo Joffily. São Paulo: Cia das Letras, 1990.