Faço votos

Era um mês chuvoso, era uma noite escura, e ela já não era nada.

Havia um trilho de trem, um silêncio de nenhum carro, nenhum gato, nenhuma folha de árvore no vento. O ano acabava como se acabam as esperanças…

Houve um latido de cachorro preso. E foi como uma fagulha. Insuficiente, porém, pra dar em brasa.

Ninguém diria que pudesse ser ela ali!

Em todo caso, não havia ninguém que pudesse se surpreender por ser ela ali.

Deixou o corpo cair na areia de grama rala, desejou que houvesse formigas e que caminhassem sobre o seu cadáver… Nada de formiga, nada que lutasse contra seu peso solto sem cuidado, nada no chão que espetasse ou ferisse.

No céu, sem lua e sem nuvem, estrelas paradas. Milenares, zilenares.

Então sentiu, depois de um tempo, a umidade do piso, e foi como se fungos de antanho lhe penetrassem a carne, enregelando.

Espirrou!

Um frêmito e a sensação de que algo aconteceria, afinal.

De fato, uma coruja aterrissou, olhou-a de lado, caminhou pra dentro de uma toca numa árvore seca. Veio depois a outra coruja. Dizem que andam sempre de par.

Suspirou…

Nenhum bicho é tão só que não tenha com quem partilhar um oco.

Depois de horas, um carro passou e um provável bêbado gritou de lá “vai pra casa, mocinha!”. Ela não era mocinha. E também não sabia direito onde era casa mais…

Tudo tão rápido, a vida tão curta, a sorte tão incerta.

Enrolou-se numa echarpe branca, desejou que se fosse o ano velho, não ousou desejar que viesse o ano novo: nas montanhas não há fogos nem ondas pra pular. Iemanjá não abençoa quem vive nas alturas.

Por que foi mesmo que veio pra estas terras? Ah, o concurso. Uma vitória perdida pra sempre…

Adormeceu cansada desse pensamento. Só levantou quando o sol já ia a pino e uma e outra bicicleta passavam com pequenos cachorrinhos de raça enfeitados, enfiados nas cestinhas, rescendendo a perfume.

Tinha estado o tempo todo ali?

Há coisas que a memória desguarda.

Mais tarde, leu mensagem sobre incêndio na universidade. Justo o gabinete da ponta do corredor do terceiro andar do departamento de estudos das línguas e linguagens ardera na madrugada. Livros e mesas queimaram. Também um computador. Sobrara uma espécie de buraco, dizem.

Não havia exatamente prazer nisso. Mas havia júbilo.

A glória vem de onde menos se espera.

 

26/12/17