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“Não sou escravo de nenhum senhor”

Estavam lá tia e sobrinha. Uma aos quase cinquenta, outra com seus doze flamejantes, interessados no mundo à volta. Tinham caminhado um bocado, bem mais do que supunham, porque tinham entendido mal a recomendação de passeio. “É só seguir a orla, vai passar isso e aquilo e aí já estão na feirinha”. A feira de artesanato, onde há cacarecos e lindezas, obrigatória nas visitas ao “Nordeste”, essa invenção nostálgica de uma região que guarda, junto às vicissitudes impostas, uma espécie de raiz de tudo, um antanho a ser celebrado nas rendas e nas comidas.

Então era isso, estavam lá tia e sobrinha na porta da feira de artesanato, conversando sobre o que viram pelo caminho: riquezas na vidraçaria dos prédios à beira-mar, pobreza nos cães magros, um mar verde de doer os olhos, um sol forte a caminho de se pôr.

Decidiram, ali na chegada, por um descanso antes de entrar na feira. Um descanso com açaí – que ambas adoram (esse que tem xarope e pode ter leite em pó, granulado colorido…). Num quiosque da pequena praça de alimentação entre a avenida e a feira, pediram açaí com banana. Sentaram-se nas cadeiras de plástico de uma mesinha, e continuaram a conversa em que vinham, contando casos de suas escolas – uma professora em São Paulo, outra estudante no Rio.

Chega o açaí pelas mãos da garçonete, que sorria simpática. A cena não poderia ser mais banal, ternamente banal: conversavam entre colheradas que iam deixando as bocas roxas. Mas vai daí que um menino, nem branco nem preto, visivelmente vindo de um mergulho no mar, visivelmente pobre, talvez até miserável, pergunta: “Senhora, paga um misto pra mim?” A tia, por certo a senhora em questão, operou no automático, instituído depois de muita reflexão nesta vida: “Claro.”

Voltou-se pra garçonete que ria alto com colegas na mesa ao lado, todas com cara de fim de turno, segredando seus compromissos pra logo mais, esperou acabar uma das risadas boas que deram, pediu o misto indicando o menino. A moça ajeitou o coque feito com a caneta e disse que sim, providenciaria, então se dirigiu ao balcão pra gritar o pedido pra alguém lá dentro. De novo banal, desta vez cruelmente banal. Mas vai daí que o menino, muito elegantemente, com o corpo semi-inclinado – sem qualquer afetação, diga-se –, pôs a mão no espaldar de uma das cadeiras de plástico da mesa onde estavam tia e sobrinha, e perguntou: “Posso?”

A tia, agora sem qualquer possibilidade de agir automaticamente, disse: “Claro.”

Tudo muito polido, gentil, verdadeiro. E completamente inusitado. A sobrinha esperando, nas suas colheradas ritmadas, vendo o que a tia fazia, o que o menino fazia, o que acontecia no entorno.

O misto custou a chegar. Havia tempo pra muito pensamento. Havia tempo pra tia dizer coisas do tipo “Como é seu nome? Você mora longe? Você vai à escola? Tem que ir, né? Estudar é importante”… esses motes que configuram a cena de adultos ricos com crianças pobres que nunca se encontram direito. Havia tempo, também, pra pararem de comer, incomodadas tia e sobrinha, estabelecendo uma solenidade na espera do misto, quando, afinal, todos comeriam. Havia tempo até pra um acesso de bondade (daquela “bondade cruel” cantada pela Paraíso do Tuiuti), em que esta senhora abnegada ofereceria ao pobrinho o que restava na taça, ou, mais ao gosto dos abastados à vontade, lhe estenderia as rodelinhas de banana, lúdica e benevolentemente.

Mas outra coisa se seguiu. E foi esta: tia e sobrinha continuaram com suas colheradas e sua conversa, que era calma, engatada desde o início da caminhada pela orla. Em algum momento a tia comentou com todos à mesa, olhos nos olhos do menino, que estava demorando, ele respondeu atencioso que era assim mesmo, já vinha. E veio depois de uns dez minutos – que é tempo à beça numa cena que recusa scripts.

O misto veio trazido pela moça com o sorriso de sempre. A tia agradeceu olhando pra ela, o menino agradeceu olhando pra ela e agradeceu de novo olhando pra tia; agradecimento simples, depois do qual se pôs a comer com a voracidade de um moleque que tinha passado o dia todo na praia e com a fineza de quem não viveu miseravelmente até aqui, de quem não viveu desamparado e sozinho feito os cães magros da caminhada. Ele não pedia socorro. Pedira comida a quem claramente podia lhe dar.

A certa altura, enquanto tia e sobrinha seguiam na sua conversa lenta, quase terminando o açaí, o menino conversou com um outro que o espreitava de longe. Disseram-se coisas ininteligíveis pras sudestinas que nunca viveram na rua. O outro menino se aproximou, sentou-se sem pedir licença, num gesto delicado e óbvio, recebeu um bom pedaço do misto das mãos do companheiro, os dois encheram tudo meticulosamente de ketchup, terminaram de comer, limparam suas mãos em uns poucos guardanapos, que depois embolaram depositando no prato, levantaram-se, devolveram as cadeiras a seus lugares, agradeceram à tia e à sobrinha com gestos de cabeça sutis e saíram para esmolar mais adiante. Viu-se, aí, que o menino mancava com dor, mas não tinham falado sobre isso, não era assunto pra esta ocasião.

O açaí, bem entendido, já tinha acabado. De fato, elas duas tinham ficado à mesa enquanto eles terminavam de comer o misto. Uns minutos de sociabilidade real, com gentilezas recíprocas e, devo confessar, um certo espanto com a suavidade do confronto.

Finalmente, elas se levantaram e foram às compras – vovô, vovó, mãe, pai, uns amigos queridos… também uns anéis de coco e quase-quase uma pulseirinha…

Nada havia mudado e tudo havia mudado. Na tia, na sobrinha talvez, certamente no pobre – e mesmo no miserável – que costumava haver neste país.

***

Ê calunga! Ê ê calunga!
Preto Velho me contou, Preto Velho me contou
Onde mora a senhora liberdade
Não tem ferro, nem feitor

 

 

Luciana Salazar Salgado

fevereiro de 2018

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