Ela estava de pé ali em frente ao posto policial instalado na porta do Trianon. Um vestido vermelho escorria pernas abaixo, longo… O calor era intenso no fim daquela tarde, mas nenhuma tempestade se anunciava. O clima apontava outra coisa.

Do lado de lá da avenida, já começava o ajuntamento: gente sorrindo porque se encontrava ali, bem em frente à faixa de pedestres que dava acesso ao todo-mundo; gente chorando porque não se tratava mais de chegar ao limite, mas de vê-lo ultrapassado. Mais: por considerar que um certo tudo começara a valer, esse tudo que é qualquer coisa.

Os policiais, não muitos ainda, estavam perfilados em frente ao parque, observando, com suas mãos penduradas na cava dos coletes à prova de bala, digamos que en garde mas nem tanto. Entre estes e aqueles, os passantes e suas conversas sobre o que viam do lado de lá.

Alguém disse que reinava uma certa paz no facebook. Posts e mais posts foram escritos sobre isso. Ninguém se lembrava de ter havido esse tipo de trégua antes. Alguém diria depois, pondo fim ao armistício, que o assassinato era de uma “amiga de bandidos” e, por isso, o resultado só poderia ser uma execução típica “dessa gente”. Entendimento de quem fala desses lugares definidos pela ética de perfis à paisana nas mídias sociais.

Passou um casal de meia idade, de mãos dadas, ele chinelo, ela salto alto, explicavam-se com resignação que aqueles eram os professores municipais, indignados com a perda da aposentadoria… Um casal sem mãos dadas, mas com uma conexão entre as silhuetas, lamentou que ontem tivessem surrado os servidores públicos municipais a ponto de os movimentos sociais terem de vir indignar-se com tamanha indignidade! Um outro casal apressado, ela digitando no celular o que ele ditava, parou por um segundo, olhou a multidão que se formava, esbravejou que, então, era por isso que não arrumavam táxi… Mais um casal, também jovem e também apressado, passou com cabelos coloridos, gesticulando punhos em riste e palavras de ordem que temos repetido à exaustão… Fora, fora, fora – e eles, os enxotáveis, não se vão: aboletaram-se; locupletam-se.

Passaram também muitos seres avulsos, muitos, afoitos e não. Comendo amendoim torrado, sanduíches, coisas de supermercado. Cantarolando com fone de ouvido, cantarolando sem fone de ouvido. Com nós de gravata afrouxados, com nós de gravata impecáveis como o verniz dos sapatos. Saias justas, cabelos alisados, bolsas de couro com enfeites místicos.

E pedintes, muitos também, variados também. Vestidos ou quase nus, com dentes e sem nenhum, pedindo água, dinheiro ou conversa. E passou uma bandeira com um vigoroso arco-íris, que uma menina linda empunhava. A menina distribuiu num zás-trás umas dez, onze, doze… treze bandeiras sem haste, só o pano, que logo enfeitou humanos, cães e caixas de papelão: minorias encontradas no descompasso.

Era de se notar que não houvesse nenhum estudante, apesar do horário. É que as escolas dali são daquelas em que se buscam os meninos sem que pisem as ruas do entorno.

Dois policiais – um rapaz e uma moça –  vieram saber por que ela estava há tanto tempo de pé ali, sem rumo. Se precisava de algo. Ela respondeu que todos precisávamos. Policiais não gostam de respostas filosóficas, insistiram com olhos de quem inquire. Ela disse que esperava um amigo. Eles perguntaram se não seria melhor aguardar perto do posto policial, então. Ela agradeceu sem entusiasmo e com receio de não agradecer, disse que preferia ficar bem à vista. Os policiais de certo modo se contentaram, foram fazer cordão fechando uma das vias. Eram muitos mais nesta altura. Era muita gente já, porque não paravam de vir os que vinham.

Afinal o amigo dela chegou. Abraçaram-se demoradamente sem palavras, atravessaram a pista que ainda mantinha o fluxo indiferente de automóveis, e puderam sentir o calor vívido embaixo do vão do MASP.

Houve falas, palmas, canções, batuques, palmas, batuques, falas, canções… Até que a multidão, como se soubesse o que era necessário, começou a marchar na avenida, numa paz de corpos sabedores do que houve e sobretudo do que está por haver.

De repente, alguém pôs a mão no ombro dela com gravidade. Era aquela policial, que lhe disse, olhos nos olhos: “não fomos nós”. Ela respondeu: “eu sei, foram eles”.

Livre de seu turno, a moça foi se desfardando, amarfanhando o paramento numa mochila com orelhas de mickey, e explicou-se: “é da minha filha”. Riram juntas enquanto acertavam o passo na curva entre avenidas, que a multidão ritmava.

A luz da Consolação agora azulava tudo, e o vestido dela se tornara lilás. De fato, irrompia, violeta, uma oração entoada aqui e alhures, numas quantas outras capitais, em cidadelas do mundo inteiro, dentro dos lares consternados. Tudo isso irradiado feito notícia nas telas que cada um portava, bruxuleando com as chamas das velas. Metropolitana procissão.

 

Luciana Salazar Salgado

14/03/2018