Duas senhoras indignadas com a falta de mamão brandiam os braços, até que um dos conferencistas – os rapazes que conferem mercadoria recém-chegada – finalmente chamou-as à razão: “ali tem melão, maçã, abacate, pitaia, atemoia, mexerica.” E terminou assim, com um ponto final mesmo. Um trabalhador dono de seu ofício – que é conferir mercadorias, o que lhe confere autoridade aí. Um senhor bonachão passou e sorriu cúmplice: “Em que mundo vive essa gente?”. O rapaz não recusou o sorriso. Nem simpático nem antipático, seguiu na sua lida.

Então fiquei pensei nos caminhoneiros, no seu poder recém-descoberto: falava-se sempre em caminhões, em transportadoras, em transporte… mas desta vez muitos deles se deram conta de que são trabalhadores do abastecimento. Não foi sem confusão e desacerto, mas com o passar dos dias, dos vídeos e áudios, o que ficou ecoando foi essa descoberta – são trabalhadores.

Isso me levou aos petroleiros, certeiros e necessários; depois aos professores das escolas particulares em São Paulo, com sua pronta reação à primeira investida do “negociado sobre o legislado”. Todos sabemos o que está por acontecer. E foi isso que me levou a um acontecido.

Aos vinte e poucos anos, professora na cidade de São Paulo, década de 1990.

A vida era assim mesmo: o capitalismo tinha vencido, fosse lá o que isso fosse; era o fim da História; instalara-se o pensamento único, acompanhado da disputa um-a-um, cada um tendo de achar seu respiro. Qualificada, logo entrei no mercado: dei aulas de balé, vendi sapatos, depois roupas de uma grife top num shopping top, mas a certa altura decidi que ia, sim, ser professora. Podia viver com menos dinheiro.

Bem qualificada, logo pude me candidatar a escolas com nomes e propostas. Feliz da vida, dava aulas todas as manhãs, todas as tardes, duas noites. Aos sábados também. Então, não ganhava pouco. Mas também mal tinha tempo de gastar… Entre outras escolas, trabalhei por mais de uma década num sistema de cursinho famoso, glamourizado à beça naqueles tempos, quando as universidades eram mesmo o gargalho mais sofrido ou o sonho mais impossível.

Embora a certa altura tenha conseguido o registro em carteira de professora, segui ganhando menos do que os colegas homens (que não se pense que sem algum barulho, mas éramos uns 3% do corpo docente…). Às vésperas dos vestibulares, chegava a dar 48 aulas (?) na semana. Na sala de professores, os intervalos eram regados a um verniz de troca intelectual que contribuía para alimentar o tal glamour: docentes da universidade eram pagos com saídas jurídicas que não buliam com sua dedicação exclusiva, e nós, em início de carreira, regozijávamo-nos – supunha-se – com as doutas conversas desses eminentes colegas. Entre as quais, aliás, muito assédio corria solto, mas não havia Maria da Penha; éramos convidadas a deixar passar, a deixar arrefecer os episódios mais ostensivos (que não se pense que calávamos, mas nosso barulho soava “bonitinho”).

Éramos todos ibopados no fim de cada semestre. Nossos salários sofriam uma certa flutuação em função disso: alunos davam-nos nota e tinham a possibilidade de escrever lá uma justificativa. A sanha dos ranqueamentos se fortaleceu nos 1990, pra quem não se lembra. Recebi várias vezes avaliações como “é descabelada”, “se veste mal”, “parece VJ da MTV”, ia longe o absurdo… A vida era assim mesmo.

Pois foi que uma certa vez, numa certa turma lá, vi o que antes não via.

Era a primeira turma entre as “de biológicas” (top no ranking de desempenho) na unidade central (top entre as várias unidades nas quais ficávamos passeando ao longo da semana, almoçando um sanduíche no carro). Era, portanto, uma espécie de ápice da carreira. Eu dava aula de Entendimento de Texto, e a gente não se entendia.

Eram uns oitenta ou cem alunos ou mais, talvez, que falavam a aula inteira, só davam respostas erradas aos exercícios, diziam aos outros professores que meu cabelão impedia de enxergar a lousa, que minhas botas verdes eram de mau gosto, que minha matéria era inútil… Um inferno. E eu não conseguia entender por quê. Nunca tinha vivido um desacerto assim, meu ibope costumava ser dos bons sem muitas concessões. O fato é que essa turma começou a ser o marco da semana. Algumas vezes, cheguei a vomitar antes de entrar em sala. Tinha sonhos horríveis na véspera. Atormentada, esperando o semestre acabar, cumpria o conteúdo. Mas isso só foi piorando as coisas, pois desvesti a personagem (todos os professores ali tinham um personagem que dava a aula) e virei uma professora crua a tratar do que estava na apostila.

Isso não significa que não houvesse espaço para o que, afinal, configura uma aula: pensamento. E aí um dia uma menina fez uma bela pergunta. Entusiasmada, comecei a esmiuçar teorias para que entendessem o raciocínio que levava àquela terminologia do exercício, e então um garoto lá do fundo gritou “AULA!”, depois do quê, alguns outros, não sei dizer quantos nem onde estavam, jogaram moedas sobre o tablado! Atordoada, ouvi o sinal bater.

Não sei se terminei de responder à pergunta, talvez não tenha dito mais nada, talvez não houvesse voz. Passei a semana quieta por dentro e por fora. Mas quando foi chegando o dia de voltar àquela turma, me dei conta da violência sofrida, comecei a contar pra pessoas na fila do banco… comecei a contar e contar como se eu mesma precisasse ouvir.

Enfim entrei na BIO 1 e disse um monte de coisas. Um monte! Avisei que só faríamos exercícios dali pra frente. O coordenador, que às vezes ouvia as aulas (sim, gravavam nossas aulas…) me chamou. Pediu calma. Argumentou sobre o ibope, os degraus que eu, tão jovem, galgara para estar ali…

Fiz as contas – as de dinheiro, de tempo, de alma. Pedi demissão.

Claro que cumpri o aviso prévio, e fiz todos todos todos os exercícios previstos com aqueles candidatos a medicina. Fui cirúrgica: fria, precisa, nem simpática nem antipática, segui na minha lida.

No penúltimo encontro, desejei boas provas a todos os que fariam vestibular de meio de ano e avisei aos demais que não voltaria no semestre seguinte.

No último encontro, entrei em sala com uma pontinha de alívio se anunciando no peito. Estava tão desinteressada deles, que custei a ver na parede um “Valeu!” encimando um “caíram todas as fichas” com letrinhas coloridas de festa de criança. Sorriram depois que eu li em voz alta. Eu corrigi exercícios. Quando o sinal bateu, uma moça veio ao tablado e, num silêncio absoluto da turma, me disse: “pra você”. Trazia nas mãos um pote de sorvete pesado, abarrotado de fichas telefônicas. Aceitei.

Usei poucas fichas, em 97 já vieram os cartões.

Não me lembro mais do que fiz com aquilo…

Nunca me esquecerei da cara dos colegas naquele último intervalo…

 

 

Luciana Salazar Salgado

01/06/18

 

*Crônica publicada originalmente no número 9 do Zinaço, edição do fanzine dedicada à greve dos professores de escolas particulares na cidade de São Paulo.